domingo, 17 de outubro de 2010

Em cores


Todos os dias criava uma outra pessoa. Criava a si mesma. Com as cores de seu estojo alongava o rosto, afinava o nariz. Outras vezes fazia-se pálida.
Gostava de sua palidez forjada.
Os olhos. Estes precisavam de extrema atenção. Sua parte predileta. No arco-íris de possibilidades tinha tudo o que poderia desejar, mas os verdes eram os melhores.
Ao mesmo tempo em que mostrava sua alma, escondia de todos aquilo que era mais importante. Ela.
Todos os dias desenhava em seu rosto aquela que teria sido. E arrumava os cabelos. E encontrava no fundo se si mesma um humor compatível para a nova face que surgia no espelho.
Olhava para seu rosto de vários ângulos. Ensaiava reações. Sorria satisfeita.
Saía para a rua feliz com tantas possibilidades e, atenta, observava a reação das pessoas.
No fim do dia, a água levava a personagem tão bem elaborada. E, encarando seu reflexo, pensava em quem gostaria de ser no dia seguinte.

Diagnóstico

Não sei mais o que é viver sem dor. Todos os dias sinto como se algo surgisse ou uma velha dor se agravasse. Tarefas simples me parecem um suplício. Meus pés doem tanto que mal consigo pisar no chão sem fazer cara feia. As costas, tanto, que fica difícil dormir. Após o banho não consigo manter a toalha nos cabelos porque minha nuca dói demais. Até para escrever - que é uma das minhas grandes paixões - passo pela dor nos braços. É como se fosse uma menina de 17 anos no corpo de uma senhora de 103.
A única coisa que parece não se desfazer é o espírito, que parece mais jovem e animado a cada dia.
É claro que penso em procurar um médico, mas as necessidades do dia a dia são tantas que acabo deixando isso sempre pra depois.
Talvez seja o stress. Talvez seja apenas o corpo externalizando a dor da alma.
A dor dos sonhos não realizados, das escolhas que antes de desejar, preciso fazer. Dor dos planos que me obrigo a deixar de lado.
Talvez seja algo mais. Algo que a teimosia e os prazos a cumprir não desejem que se descubra.
Ou talvez seja apenas o cansaço. O cansaço de uma longa jornada vivida num tempo curto demais.

sábado, 2 de outubro de 2010

Neshamah

E começou a sonhar.
Em seus cabelos o forte vento trazia à mente aquele perfume penetrante. Parecia às vezes sair de sua própria pele.
Para frente a incerteza, para trás o desconhecido. Corria, e a única coisa que parecia importar era aquele perfume.
Seus pés pisavam a areia fofa e seca.
Seu coração batia apressado e forte em seu peito. Quase era possível ouvi-lo. Nos olhos, a esperança.
E na alma, a certeza de que fazia a coisa certa.
Naquelas terras estranhas, com aquele perfume preso à própria existência, dedicou-se apenas a esquecer. Esquecer tudo o que vivera até aquele instante. Todas as alegrias e todas as tristezas. O barro mesmo do qual fora feita.
O céu era brilhantemente colorido. Bem como agora, seu sorriso.
E abriu os braços. E recebeu radiante, mais uma vez, o abraço do vento.
Tentou olhar para trás. O que viu não se sabe. Havia, naquele momento mágico, feito sua escolha para sempre.
E decidiu sonhar...